Baseado em fatos surreais: Flashes de memória
Seu melhor amigo ao telefone, perguntava, movido por uma sutil
ansiedade, quem ela levaria à festa de aniversário dele. Teve dificuldade em
responder. Estava exausta. A pergunta feita por ele, fez com que seu cérebro
passasse um filme com direito a comentários do diretor, sobre as últimas 24
horas de sua vida.
A fita foi rebobinando em saltos não lineares. Primeiro lembrou-se da
noite anterior. Mas antes disso, havia passado o por do sol jogando cartas com
aquela garota dos cabelos avermelhados.
Quando a festa começou, separaram-se
por uma cerveja ou duas. Ela encontrou aquele amigo do olhar perdido, que sempre
tentava se aproximar mais do que era possível. Repetindo o que já tinha
acontecido algumas vezes, ele tentou lhe roubar um beijo. Ela virou o rosto
para o lado ato num reflexo e viu de relance os cabelos avermelhados batendo em
retirada.
Ele ficou alguns segundos a olhá-la com a expressão de quem espera uma resposta. Como não sabia muito bem o que dizer numa situação dessas, acabou
fazendo o que mais gostava e o que menos tinha oportunidade: dizer a
verdade. Embora Ela também se pegasse a fazê-lo, a incomodava bastante a
postura que muitas pessoas faziam de tudo para não
encarar a realidade, quando esta era muito áspera. Como sua mãe a ensinara a
não mentir, tinha uma longa lista de subterfúgios e eufemismos, que acabavam
tendo prioridade quase sempre. Tornou-se especialista em responder somente o perguntado. Dizia somente o necessário. E, na maioria das vezes era
somente aquilo que as pessoas agüentavam saber. Mas essa era uma daquelas
situações em que não tinha escapatória.
A reação tranqüila dele ao ouvir que seu beijo não era desejado
naquela noite e sim o de outros cabelos longos, pareceu a Ela um tanto formal,
ou artificial, ou ambos. Mas achou digna. Deixar transparecer a falta de treino
em fazer aquilo que é o mais correto, porém, mais difícil, é de uma coragem
admirável. E foi em respeito à coragem do amigo, que partiu em busca de outro
beijo.
Quando conseguiu encontrar a garota dos cabelos avermelhados, estavam em pontos opostos da festa. A leve vermelhidão artificial de seus cabelos
emoldurava uma expressão preocupada. Por gestos, Ela tentou perguntar o motivo. Percebeu que aquele diálogo à distância era incompreensível e uma perda
de tempo. Partiu com a determinação de uma flecha em direção ao outro lado da
festa.
Sua pele tinha um cheiro difícil de não notar. Era levemente
adocicado, como fruta, mas fresco, como flores azuladas. Durante alguns
segundos, tudo ao redor desapareceu. Os sons que saiam do círculo de músicos e
a profusão de vozes que conversavam e riam, abriram espaço para aquele vácuo em
que as duas se enfiaram. Ela não sentia medo ou vergonha. Estava inteira,
concentrada e entregue. Todos os milhões de limites que, costumeiramente
habitavam sua mente tinham acabado de virar fumaça.
Estranhou um pouco essa descomplicação. Ela nunca tivera aversão aos
homens. Eles foram tudo o que ela conheceu durante a maior parte de sua vida.
Havia se desgastado tanto a procura das tais “formas sublimes e humanas de
relação”. Sua trajetória era tortuosa, repleta de episódios desagradáveis de
toda a sorte. Mantinha uma coleção de abusos desde a infância, além de uma
série de relações afetivas e sexuais descompassadas.
Todo esse acervo de experiências, fez com que Ela adquirisse uma
cautela, que por vezes a aprisionava. No entanto, contraditoriamente a todas as
suas defesas, a superficialidade nas relações lhe causava um profundo tédio, ou
melhor, a angustiava. Era por isso, que não se conformava enquanto não
conseguia despir as pessoas, que tinha oportunidade, de seus pudores e
descobrir quantas camadas havia por trás daquilo que os olhos podiam ver. Sentia
prazer em descobrir onde se encontravam as dores do outro. Mas não no sentido
sádico. Gostava de saber onde se achava o limite do outro. O imperfeito, o
inacabado, o incompleto. Aquilo que era extremamente humano.
Só assim se sentia segura para também
se permitir ser vista exatamente como ela era.
É intimista e ao mesmo tempo universal, é bonito e angustiante. Tá escrevendo bem pacas, heim, menina!
ResponderExcluirÉ disso que estou falando... lindo!
ResponderExcluirde uma profundidade admirável.
ResponderExcluirincrivel mesmo como me senti nessa cena descrita dessa forma tão sutil e ao mesmo tempo profunda.
ResponderExcluirlindo e muito bom.
para não dizer que é real... ou seria surreal??
sem mais.